sexta-feira, 20 de abril de 2007

Capítulo Décimo Primeiro - Das Pequenas Coisas

Pequenas coisas - já diz Maitena - não são o mesmo que coisas pequenas. É a imensurável presunção do ser humano que as confunde, aprisionando a ambas na vala comum da desimportância.
Pequenas coisas são essenciais à vida. A partir da célula, do átomo. Lembranças de infância, brinquedos que não brincam sozinhos, pores-do-sol, listas e bolinhas, gosto de bolo de avó - muito melhor que as Madaleines de Proust -, barulho de chuva no telhado, amora e manga tiradas do pé, ler quando dá vontade, um solo de violino, cheiro de café, tudo isto pertence à categoria das pequenas e intangíveis coisas.
São, sim, pequenas, porque podem passar despercebidas pelo correr do dia-a-dia, escapar aos olhares mais atentos, mas, isto, as grandes também podem sê-lo, porque estar atento implica mais que perceber. Necessita e se nutre da preocupação com o outro e com si mesmo.
É este norte que transforma as coisas pequenas em pequenas coisas, dá-lhes importância, faz a diferença.
Porque é no olhar do outro que elas se refletem, é no sorriso do outro que se deixam identificar, é no outro, para o outro, pelo outro que se multiplicam em frações intermináveis, como um campo de flores ou uma revoada de borboletas.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Do Dez + Cinqüenta e dois

O dez é a base do sistema, é natural, é intuitivo - ao olhar as duas mãos, você vê o dez.
Ele satisfaz a nossa busca pela perfeição, por conter um ciclo inteiro, estabelecer um marco, uma série, um número completo.
São dez os mandamentos que se propõem manter nosso mundo em paz e o ser humano em harmonia.
É o dez o responsável por armar o jogo – o meia avançado, como dizem os antigos boleiros. Aquele que faz a ligação entre defesa e ataque. Ele fica lá, naquele grande círculo do meio-campo, olhando, acompanhando os acontecimentos.
De repente – não mais que de repente – descortina a jogada. Recebe a bola, vê o lateral descendo, vai tocando, meio que com preguiça, como se fosse o mestre-sala e ela, a bola, uma porta-bandeira. Quando todos esperam o passe, ele dribla e segue. Quando todos esperam o drible, ele passa. Na medida, de bandeja, com efeito.
Mas o dez não acaba aí. É apenas um brinde, um surpreender a multidão durante um espetáculo ainda em andamento. E, exatamente porque a bola reconhece quem a trata bem, ela volta ao dez, pitagoricamente, demonstrando que a tabela obedece a clássica regra do a2 = b2 + c2 . E é gol. Sempre. Todos os dias, mesmo que sejam 19, 8 ou 27. Porque o dez é mesmo insuperável, indispensável, inesquecível.

domingo, 4 de março de 2007

Décimo Capítulo - Das Origens

Tal como a língua, somos quem somos por força de quem viemos. É o Gênese imperativo, em que parte corresponde à matéria-prima original, parte vai se acrescentando ao longo do caminho. Porque o caminho influi. Os encontros trançados pelo viver diário, abertos e disponíveis para quem saiba enxergar, ouvir, aprender, vão trazendo novos significados, novos conceitos, que se ligam e incorporam a tudo o que veio conosco.
O depósito primordial vai se ampliando, dando espaço e guarida a um sem-número de signos, símbolos, interpretações, que enriquecem ou substituem os originais, demonstrando, mais uma vez, que nós mesmos, como a língua, estamos vivos, somos dinâmicos, estamos em permamente mudança.
Algumas coisas, porém, permanecem. Como aos fundações de uma cúpula, seus pontos de apoio são. Não estão ou ficam. São, apenas, graças à sua essencialidade. Para alguns, é o caráter. Para outros, o exemplo. Para uns tantos, regras morais aprendidas à força de muito discurso e castigo.
Mas permanecem. Desafiam os tempos e as novidades - sem lutar contra elas, é verdade, porque as próprias novidades reconhecem essa essencialidade.
Reconhecer, respeitar, venerar nossas origens é, portanto, imperativo. É bom lembrar, porém, que devemos nossa própria parcela de contribuição a este Gênese. Motivo pelo qual há que acrescentar, mudar, aprimorar, viver.
Hodie, semper.

Nono Capítulo - Das Declarações

Podem ser profissões de fé, protestos de inocência, posicionamentos. Podem ser de amor. Podem aproximar ou manter à distância. Podem deixar marcas irremovíveis ou cair no esquecimento nem bem tenham sido feitas.
O que importa é o uso das palavras e as reais intenções em cada declaração.
Às vezes, parecem mentiras deslavadas, mas são verdadeiras - as intenções, digo. Outras, posam de monumentos da ética e moral, mas não passam de disfarces, fraquezas escondidas, bonitas embalagens para maus produtos.
Uma declaração não vem com bula ou certificado. É a expressão do que se sente na hora, um marcar posição, um sinal de alerta, um fazer questão de esclarecer o que se diz e porque dizê-lo.
Não significa, entretanto, que seja verdade. Pode ser apenas uma intenção, uma promessa, um desejo.
Do ponto de vista de quem ouve, porém, uma declaração é fato. Pode-se crer nela, ou não. O que importa é a existência em si da declaração.
Mesmo que ela se transforme ao longo do tempo, se contradiga, se esvaia.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Oitavo Capítulo - Dos Elogios e Maledicências

Se elogios aquecem e confortam, maledicências fazem ferver. E, no entanto, são extremos opostos do mesmo caminho. Ambos se aplicam normalmente a quem foge dos padrões. Por motivos diversos, são armas - uma, do bem; outra, do mal. São arma do bem quando verdadeiros, sinceros, ditos ou escritos acima e além da simples vontade de agradar, sem objetivos sujacentes. São arma do mal quando - independentemente de se basearem na verdade ou na mentira - têm por objetivo único torpedear a reputação.
Palavras, aqui, têm participação coadjuvante. Um elogio pode ser feito mediante um olhar, um sorriso, um toque, uma atitude. Maledicência, também. Não com o mesmo olhar terno, mas esquivo; não com um sorriso caloroso, mas irônico; não com um toque de apoio, mas de exclusão; não com atitude solidária, mas dissimulada.
Tirante esta diferença conceitual, são iguais. O que os torna diferentes entre si é a sua capacidade de classificar as pessoas - sejam as que são objetos de seus efeitos, sejam as autoras.
Vivemos em uma época de amplo acesso a informações. É natural que estas informações, porém, sofram todo o tipo de interpretações, deformações, edições. O resultado é que, de maneira geral, recebemos versões, não fatos; opiniões, não descrições. E, pela própria diversidade de informação à escolha, poucos se dão ao trabalho de ir em busca dos fatos.
O problema deve estar aí. Fatos são o que são, não o que queremos que sejam. São desinteressantes, às vezes; racionais, em sua grande maioria; incontestáveis, sempre.

sábado, 10 de fevereiro de 2007

Sétimo Capítulo - Dos Números

Números têm um sabor todo especial, já que são a abstração da abstração, um conceito dentro de um conceito, uma linguagem emprestada para dar forma e significado ao permanente sentimento humano de quantificar as coisas, medir, avaliar.
Nem sempre corresponderam a sinais específicos - na antiga Roma, as letras também representavam números, o que, aliás, deve ter sido o terror de todo ginasiano daqueles tempos (já imaginou efetuar uma operação como MCMXXVII x DCL?)...

Mas não é esta a nossa preocupação; nossa questão é a relação dos números com as pessoas, especialmente essa mania de medir. O ser humano é o único animal que se preocupa em medir o tempo, por exemplo. Os animais em si, percebem o passar do tempo por instinto; é uma constatação, apenas. Só o homem mede, quantifica, realmente percebe o passar do tempo. Verifica, por exemplo, que existe um tempo real e um tempo relativo - aquele que demora a passar, ou passa rápido demais. O mesmo minuto dura horas ou poucos segundos, a depender da situação.

Por que essa preocupação com o medir? Por que essa ilusão de que sabemos exatamente quando, quanto? Por ilusão, mesmo. É isto que nos dá a falsa segurança de que controlamos o mundo, quando, na verdade, é ele quem nos controla, aumenta nossa ansiedade, nos obriga a correr para que possamos contar com mais tempo livre - o que quer que isso signifique.

Al Karismi é que estava certo, ao dizer que medir é comparar. O problema não está no conceito, mas no estabelecimento das comparações. Nem sempre a quantificação é possível, ou absoluta, ou necessária. Ou desejável.

domingo, 4 de fevereiro de 2007

Sexto Capítulo - Dos Sinais Gráficos


São uns incompreendidos. Há quem os considere completamente indispensáveis, inúteis, arcaicos. Nada mais distante da verdade. Sinais gráficos são distinções, uma espécie de DNA da língua escrita, conferem personalidade - mesmo que aqueles na faixa dos cinqüenta nunca tenham plena certeza se o correto é cores ou côres...

Sinais gráficos são injustiçados, são vítimas da ditadura da TV, que os considera dispensáveis até nos caracteres explicativos da barra noticiosa ou, pior, peca pelo excesso, salpicando crases e acentos agudos a seu bel prazer...

Não basta, porém, reconhecer sua existência. É fundamental perceber que eles trazem, em si, uma ênfase toda especial, que consegue atribuira à linguagem escrita todas as entonações características da linguagem falada, ao mesmo tempo em que sinalizam determinadas uniões que de outro modo não seriam percebidas.

São, portanto, mais que úteis, são essenciais.

Faz-se necessário um movimento em defesa dos sinais gráficos: todos eles existem e permanecem, a despeito de sucessivas reformas ortográficas, merecem nosso respeito.